Imagine uma paciente idosa, na zona rural do Brasil, que procura o posto de saúde com queixas vagas: cansaço, palidez, hematomas espontâneos. O médico solicita um hemograma. O exame mostra alterações discretas, mas relevantes — talvez uma leucopenia, anemia com desvio de padrão, plaquetas baixas. Contudo, sem a presença de um hematologista ou ferramentas adequadas de apoio, esses sinais passam despercebidos. Ela volta para casa com uma receita de ferro. Meses depois, a realidade cruel: uma leucemia já avançada, que poderia ter sido detectada antes.

Essa história não é rara. 

Segundo dados da associação do setor de medicina diagnóstica, mais de 2 bilhões de exames laboratoriais são processados anualmente no Brasil. O hemograma, exame mais solicitado do país, representa uma grande fatia desses dados. E, ainda assim, estudos apontam que até 18% dos exames com resultados anormais não recebem seguimento adequado, seja por falhas na comunicação, na interpretação ou pela ausência de especialistas (Murphy et al., 2017; Callen et al., 2011).

O resultado? Diagnósticos tardios, atrasos em encaminhamentos e, no caso das doenças hematológicas, perda de tempo precioso. Doenças como leucemias, linfomas e síndromes mielodisplásicas podem evoluir rapidamente. O diagnóstico precoce muda não apenas o desfecho clínico, mas a vida do paciente.

É aí que a inteligência artificial (IA) entra como vetor de mudança — especialmente no SUS, onde cerca de 70% dos atendimentos de saúde são feitos por médicos da atenção primária, e o acesso a especialistas, como hematologistas, é escasso, especialmente nas regiões Norte e Nordeste.

Pesquisas recentes demonstram que modelos de IA treinados para interpretar hemogramas conseguem identificar padrões sugestivos de doenças graves com acurácia superior a 90% (Zhou et al., 2021; Liang et al., 2019). Essas ferramentas podem atuar como co-pilotas do raciocínio clínico, chamando atenção para alterações relevantes, sugerindo condutas e, sobretudo, garantindo que menos exames passem despercebidos.

Uma iniciativa pioneira no Brasil já mostrou que, com IA integrada ao sistema de análise laboratorial, foi possível detectar sinais de doenças hematológicas com sensibilidade clínica real superior a 94%, impactando diretamente a conduta de médicos generalistas. Em vez de apenas observar um resultado fora da faixa de referência, o médico tem acesso a um painel inteligente, que sugere diagnósticos diferenciais e caminhos clínicos recomendados.

Além do impacto assistencial, o ganho econômico é inegável. Segundo a Organização Mundial da Saúde, cada dólar investido em diagnóstico precoce de câncer gera retorno de até 10 dólares em custos evitados no tratamento (WHO, 2021). Em doenças hematológicas, o custo de internações prolongadas, quimioterapias em estágio avançado e manejo de complicações é imensamente maior do que o custo de uma triagem inteligente e precoce.

A transformação digital da saúde não pode — e não deve — ignorar o potencial de tecnologias como a IA para salvar vidas. Principalmente no Brasil, onde as iniquidades de acesso e a escassez de especialistas tornam o sistema menos resolutivo. A inteligência artificial na saúde não é um luxo. É uma ponte entre o que temos e o cuidado que a população merece.

Fontes:

  • Callen JL, Westbrook JI, Georgiou A, Li J. Failure to follow-up test results for ambulatory patients: a systematic review. J Gen Intern Med. 2011.
  • Murphy DR, Meyer AND, Singh H. Patient and provider-level barriers to the timely diagnosis of cancer. Diagn Interv Imaging. 2017.
  • Liang H, Tsui BY, Ni H, et al. Evaluation and accurate diagnoses of pediatric diseases using artificial intelligence. Nat Med. 2019.
  • Zhou X, Liu F, et al. A real-time AI-based system for detecting hematological diseases from peripheral blood smears. Blood. 2021.
  • WHO. Global breast cancer initiative: implementation guide. Geneva: World Health Organization, 2021.